Visão da qualidade em 2009
O artigo reflete a minha visão sobre a qualidade em 2009. Na verdade não é algo muito original. Pincei alguns parágrafos do excelente livro de Matthew May (2007), Toyota: a fórmula da inovação. O livro reflete o meu sentimento da qualidade nas empresas na atualidade. Outro livro que é quase uma copia do anterior (exceto por ter sido escrito antes) é o livro “Qualidade: A revolução da Administração” de 1990 escrito por Deming, que ensina os mesmos preceitos que os encontrados no livro de May. Deming comenta, por exemplo, da importância do Saber Profundo para a melhoria de um processo e da inoperância da recompensa monetária como forma de estimular a criatividade no trabalho. O “Saber Profundo” visto como um sistema inclui quatro componentes: a) Uma visão geral do que é um Sistema, b) Elementos da Teoria da Variabilidade, c) Elementos de Teoria do Conhecimento e d) Elementos de Psicologia. Mostro a seguir por que Deming era tão crítico com a alta gerência quando o assunto era Qualidade – o que ele observava a toda hora era que as iniciativas pouco tinham a ver com a gestão da estratégia de uma empresa bem sucedida. Pouco tem mudado desde então.
Gostaria mencionar que o conceito de qualidade, ao igual que o conceito de inovação, pode ser considerado de forma ampla ou, como acontece frequentemente, ligado a um departamento ou setor da empresa. Na minha visão, a qualidade e a inovação na visão tradicional não estão se saindo muito bem. Possivelmente isso explica o encolhimento que está acontecendo nos Departamentos de Qualidade pelo mundo afora. Setores que antes acomodavam centenas de funcionários com a função de “guardiões” da qualidade estão sumindo do mapa. A Qualidade fica agora ligada a outros 3-5 setores sob algum nome que cobre vários termos (exemplo: QSSMA – Qualidade, Segurança, Saúde e Meio Ambiente). A tarefa da qualidade está sendo compartilhada com os diversos processos da empresa.
A maioria das companhias faz um balanço anual sobre os objetivos, passando dias fora da sede para realizar um exercício de criatividade escrito, em que elaboram proposições concisas, cuja intenção é inspirar, mas que acabam soando vazias e não captam o motivo real de sua existência. Por isso fazem esse balanço todo ano… ainda estão tentando acertar. Usualmente nesse balanço anual a qualidade ocupa uma breve menção do relatório final; mais bem é algo pro forma que deve estar lá porque “pega bem” para os clientes e funcionários.
A qualidade e sua prima, a criatividade, deveriam ser pensadas como meta estratégica das empresas. Usualmente não é o que acontece. O mundo não vê a perfeição como uma meta a ser seguida. Fazer certo foi substituído por fazer de qualquer maneira. Com algumas raras exceções, a indústria parece ter caído no conto do vigário de que qualidade, custo e velocidade não são inteiramente compatíveis. Uma nova engenhoca, com mais recursos do que somos capazes de assimilar, será lançada amanhã. Enquanto isso, ainda não conseguimos descobrir como usar o que compramos hoje que, a bem da verdade, nem funciona tão bem assim. Seu celular tira foto, envia mensagens, filma e toca música, mas a função principal, que é ligar, só dá para o gasto.
Existem muitos exemplos que ilustram a forma de trabalho das empresas:
- Sob o nome de logística reversa (ou devolução de produtos com defeitos ao fornecedor) há grandes fábricas escondidas que retrabalham os produtos e os revendem como novos.
- As montadoras exigem aos fornecedores a utilização de processos de contenção que na prática significam concentrar os esforços na inspeção (ainda!) e uso de brainstorming para detecção “rápida” de causas raízes. Ainda acredita-se que a inspeção melhora o produto. Não há um envolvimento real de clientes e fornecedores para a melhoria da qualidade dos processos.
- É claro que o uso de análise de falhas (sob o nome de FMEA) não pode faltar! Usualmente isso significa o preenchimento de uma planilha com várias colunas e com a promessa de ações para redução das falhas. Raramente a ferramenta é usada para prevenção com análise criteriosa das causas.
- Do CEP (controle estatístico de processos) nem se fale: como é uma ferramenta “muito simples”, são cometidos erros grosseiros na sua utilização. Utilizam-se limites de especificação ao invés de limites de controle. Os limites são atualizados com freqüência exagerada (limites “dinâmicos”) pela impossibilidade de manter o controle (me engana que eu gosto). São usados grupos de observações que com frequência não representam a variabilidade real do processo e então aparecem tantas causas especiais que o gráfico vira um enfeite. São utilizados gráficos para variável atributo (defeitos ou defeituosos) quando o processo não responde às distribuições de referência apropriadas e como resultado aumenta o número de causas especiais.
- O critério de autocontrole para que os funcionários possam controlar o processo sem cometer erros, raramente é atendido. Um operador está em estado de autocontrole quando: conhece o que deveria fazer, conhece o que está fazendo (sistemas de medição adequados) e tem capacidade de regular o processo quando ele sai do controle. Conforme destaca Deming em seus ensinamentos, mas uma vez a responsabilidade está nas mãos da gerência: como o funcionário pode ter a disciplina necessária para chegar nesse estágio se as pessoas acima dele não têm essa visão?
- Os produtos (ou serviços) são lançados ao mercado sem que o processo seja suficientemente robusto. Não tem problema! Temos uma ótima assistência técnica e corrigimos o processo com o bonde andando. O importante é lançar rápido o produto (e deixar o cliente subindo nas paredes…). O pessoal vende o produto com promessas que a empresa não está preparada para assumir.
- O ambiente de serviços é especialmente constrangedor: call centers com a missão de atender às necessidades dos clientes, mas com taxas de turn-over altíssimas; vendedores que recebem bonificação quando atingem certas metas, mas que não têm a mínima noção de como interpretar a evolução de suas vendas. Atendentes e vendedores nos pontos de venda que não conhecem as características dos produtos que vendem e não conseguem dar informações seguras ao cliente.
- Como os executivos não são capazes de acender a paixão das pessoas de forma intrínseca, se parte para a motivação extrínseca (entenda-se dinheiro). Os eventos de melhoria contínua do tipo kaizen, são uma raridade.
- Somos bons em apontar soluções, mas não tão bons na implementação dessas “soluções” e muito menos no controle posterior de resultados.
- Temos sistemas para gestão da informação altamente sofisticados do tipo SAP, mas quando se precisa informação para análise de causas-raízes, ela raramente é encontrada.
- A compreensão da variabilidade é tão fraca que não dá para lidar com os dados do dia a dia, intrinsecamente variáveis. Alguns exemplos:
- Traçamos retas de regressão no Excel e decidimos em função da tendência observada sem importar se ela é ou não real.
- Usamos o princípio de médias móveis (de 12 meses) para “diminuir” a variabilidade dos dados e acreditamos nas tendências observadas (quando em muitas ocasiões elas não existem e foram criadas pelo cálculo).
- Tomamos decisão sobre o efeito das “melhorias” comparando os resultados de um mês com os do mês anterior.
A busca da perfeição deveria ser um processo contínuo. Usualmente se procura o grande pulo das grandes ideias inovadoras que acontecem uma vez na vida e outra na morte. Considera-se a melhoria contínua algo medíocre. O nosso dia a dia está ocupado com questões mais importantes de vida ou morte que desprezam os sinais evidentes do alto custo da qualidade que diminui os lucros das empresas. Quando se acompanham os custos da qualidade usualmente as empresas mencionam valores entre 2% e 5%, quando na realidade deveriam ser algo em torno de 20% a 30% ou maiores. Estes números foram determinados ao medir os custos da não qualidade por empresas que atuam a diferentes níveis de qualidade Sigma. Não se incorporam nesse custo os valores elevados devido a retrabalho, estoques desnecessários, esperas, perda de oportunidades, processamentos em excesso, paradas “programadas” e outras tantas fábricas escondidas.
A maioria das empresas considera a busca da perfeição mais problemática do que proveitosa. Preferem geralmente as grandes ideias que dão lucro rápido e com pouco custo de análise. Não importam os custos dessas ideias no longo prazo. Dá retorno no momento? É lucro.
Temos que comprar bombas para substituir as antigas? Pronto, não busquemos parceiros permanentes com os quais possamos ter uma relação duradoura de longo prazo. Entremos na “recomendação” das normas que dizem que devemos fazer pelo menos 3 cotações e, atendendo aos requerimentos técnicos, leva a de menor preço. Não interessa se isso em geral acarretará problemas de manutenção, estoque de diferentes peças sobressalentes para atender aos 10 tipos de bombas espalhadas pela empresa, demoras para o reparo, e dezenas de outros problemas. Interessa que o departamento de compras foi esperto e conseguiu um abatimento no preço de 20%. Isso já era mencionado por Deming lá em 1982: “o departamento de compras tem que mudar o seu enfoque, e passar do custo inicial mais baixo do material adquirido para o custo global mais baixo. É também necessário aprender que as especificações dos insumos não dizem tudo sobre o desempenho”.
Ainda achamos que apagar incêndio e “procurar” a causa-raiz em 5 minutos com a armadilha do brainstorming para “conter” o problema representa melhora do processo. Ainda achamos que a remoção de uma causa especial em um gráfico de controle para que ele volte ao estado anterior é melhoria. Como destaca Deming isto somente faz o processo retornar ao ponto em que deveria ter estado inicialmente.
A melhoria contínua acabou se revelando, em meados da década de 1990, um dos milhões de esforços pela qualidade que falharam pelo mesmo motivo: a síndrome da solução milagrosa, ou pílulas mágicas para as doenças dos negócios. A melhoria contínua trouxe evolução na melhoria da qualidade, mas essa melhoria não atingiu os níveis que podiam ser atingidos. Não houve um aprendizado profundo e não se criou nenhuma capacidade nova. Os gerentes queriam excelência, mas não queriam dar duro. Queriam sucesso rápido e barato, a fim de mostrar resultados. Foi uma postura reacionária concentrada em remediar, não em uma busca pela melhor forma ou a forma ideal de fazer as coisas. Quando todos os frutos mais à mão foram colhidos, e teve início o meticuloso trabalho de mudar o sistema para descobrir e resolver problemas mais complexos, eles saíram em busca de uma nova solução milagrosa.
E essa nova solução milagrosa chegou! Sobre o nome de Seis Sigma, Lean, Lean Seis Sigma! E depois de certo tempo estamos novamente no mesmo ponto… na armadilha do “ganho rápido”, da transformação do “mapa atual” ao “mapa como deveria ser”. São treinados Black Belts sem conhecimento profundo que não sabem elaborar modelos para fazer previsões com um mínimo da acurácia. Alias, a própria menção de “modelo estatístico” já é assustadora. São certificados Belts conforme o desejo do cliente. São treinados Master Black Belts (a máxima sumidade técnica do Lean Seis Sigma) em uma semana porque o importante mesmo é a capacidade de gestão. Confunde-se a figura do Master Black Belt com a de Champion de implementação. Aí aparece o pessoal da ISO com uma proposta de “normatizar” o Seis Sigma, algo um tanto descabido já que o Lean Seis Sigma é uma estratégia que tem um pé no caos e outro no controle, como mostra a figura a seguir.
Os projetos não podem demorar muito tempo. O mundo atual “exige” respostas rápidas. Então procuremos o treinamento mais rápido, aquele que traga resultados rápidos e que não exija de certo tempo de maturação dos Belts e, principalmente, da liderança que, afinal de contas, está ocupada em questões mais relevantes. Deixemos bem claro para a galera que eles não podem deixar de realizar as atividades do dia a dia “perdendo tempo em soluções que exijam maturação”. Não interessa que essas atividades estejam cheias de passos que não agregam valor ao cliente ou negócio. O que manda é o orçamento e as promessas feitas aos acionistas.
Dessa forma não é de se estranhar que as empresas ganhem dezenas ou centenas de Belts com baixa capacidade de resolução de problemas complexos ou que 60% a 75% das iniciativas de mudanças falhem logo no início. O resultado é previsível: baixo retorno dos esforços de implementação e abandono da filosofia. Usualmente é fácil reconhecer a origem da falha: gestores da empresa com visão de curto prazo e baixo comprometimento. Eles usualmente dão total apoio … “moral”, mas seu baixo envolvimento nas ações de melhoria dá um sinal claro aos envolvidos que a iniciativa não é séria nem é “pra valer”.
Gostaria de fechar o artigo destacando que há um pequeno e honroso número de empresas que trabalham muito bem. São empresas preocupadas com a busca da perfeição. Trabalham com qualidade orientada pelo cliente e têm processos para ouvir a voz do cliente – e a voz da cadeia completa – e traduzi-la em ações concretas de melhoria. Quando as empresas pensam assim, nada pode detê-las. É possível trabalhar de forma séria. A receita é simples, devemos engrossar o número de empresas que pensam que o trabalho sério e o comprometimento no longo prazo compensam.
Atingir o saber profundo e conseguir que todos os funcionários se engajem na melhoria contínua não é um processo fácil, mas pode ser extremamente lucrativo para a empresa e a sociedade no longo prazo.
Referências bibliográficas:
- Deming, W. Edwards (1990). Qualidade: A revolução da Administração. Ed. Marques Saraiva. ISBN: 8585238151.
- May, Matthew E. (2007). Toyota. A Fórmula da Inovação. Campus. ISBN: 9788535224474.
Carlos Domenech – MBB
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